RUMOR BRANCO (1962)
uma voz existe intersticial. há trevas à tua volta e tu não és. serás um dia. por sobre este vazio orbe a luz pesa milénios em sua ansiada ausência e à superfície dos rios invisíveis o presente galopa arrepiadamente. se fosses verias que sem ti o globo é cego minha desde já assemelhada imagem. fazes falta. o mundo não está ainda completado. para ele serás demasiado alto. a escuridão é aterradora fria sem fim é desolada assim sem ti. neste hoje do princípio dos séculos não farei mais nada. o futuro continuará ao rés das águas que não são vogando. amanhã daqui a muita espera quando a claridade brotar já sobre a crosta da terra convulsiva criarei um firmamento para o qual possas olhar constantemente sua altura aspirando e as fontes serão vistas que eram por cima do firmamento do céu e pelo solo em volta separá-las-ei com grave gesto. nesses mares que durante séculos de séculos tombarão da névoa imóvel te poderás lavar purificar-te conhecer a tua face. depois haverá cores e uma tarde virá e a manhã e tudo é bom.
[5.ª edição revista, 2012, pp. 21-22]
A PAIXÃO (1965)
A árvore ainda, para terminar; ergue-se no quintal da casa, como um templo, como um prédio de cimento armado; cresce; os ramos desenvolvem-se para cima, para os lados; depois de grandes, o peso tomba-os um pouco, lentamente, para baixo; floresce; nascem as folhas brilhantes e sedosas, frágeis, puras, informes, como um raio de prata; criam nervuras que endurecem, tornam-se rudes e pesadas; dão frutos, sementes, sumos, cores, sabores, cheiros, saciedade; as flores sonham, adormecem, ficam velhas e instáveis; tombam; e movem-se; e morrem; caem as folhas; fica a árvore; permanece; anos e anos e estações e séculos; dá mais folhas, flores e frutos, sementes, fecundidade; repete-se; e no tronco aparecem fundas rugas, em que se ocultam os deuses, feiticeiros, visionários, profetas e a eternidade; tira-se a seiva; resina; tira-se o casco, a saudade; fica a árvore; cortam flores; enfeitam jarras, usam-nas com velha arte; colhem-se os frutos e, enfim, apodrece a velha árvore; o tronco fende; as folhas caem; ficam os ramos no ar; cortam-se os ramos despidos, o vento arranca as raízes e é então que tomba a árvore.
[12.ª edição revista, 2013, pp. 219-220]
CORTES (1978)
Exmo. Senhor Juiz dos Crimes de Luanda,
Manuel da Silva, mais conhecido por Silva dos Caixões, enfermeiro reformado e com estabelecimento de comes e bebes. Tenho um quarto com oficina de caixões, de idade 47 e três meses e tal, amigado com senhora mulata, declara sob sua palavra de honra falar verdade. Eu venho queixar-me do seguinte: o meu compadre Hermenegildo, que é guarda da polícia, e que está amigado com uma preta chamada Rosa, bateu à porta da cantina às quatro da manhã. Não abri a porta julgando que os pretos queriam pinga mas quando ouvi a voz do meu compadre disse à minha amiga para abrir a porta. Eu estava com febre, quando o meu compadre disse: olha, morreu o comissário da Polícia. Embora com febre pensei logo em fornecer o caixão para ganhar algum porque só a cantina não dava nada e fui logo tratar do caso. Fui ao Quartel General e lá deram ordem para fabricar o caixão de 2500$00 (digo: dois e quinhentos). Depois do referido caixão estar pronto levei o dito caixão para o Quartel General e pedi o dinheiro. Quanto voltei para a cantina encontrei o meu compadre Hermenegildo que estava a matar o bicho com a negra Rosa com quem está amigado. O meu compadre também disse que eu havia de receber a massa mas como estou basto escaldado não fiquei muito contente. No dia do funeral eu estava resolvido a não deixar sair o enterro da Câmara Municipal sem pagar primeiro o caixão, mas vi tanta gente com espada e galão que tive medo de armar uma maca. Dois dias depois fui ao Quartel General e lá disseram-me que não tivesse pressa e que nada estava resolvido. Ora isto de brincar com o dinheiro dos outros não é bonito, senhor juiz, acho eu. Esperei mais um dia e fui novamente saber quando é que me pagavam o caixão e lá disseram-me que o enterro era por conta do Governo e que a Secretaria é que me pagava. Toca a andar até à Secretaria Geral e lá acharam que era muito caro o caixão. Eu disse que o caixão era de luxo em forma de ataúde e só depois disseram que fosse saber na Fazenda que aí me informariam. Lá vou como um safado e aí um empregado cheio de pamporra me disse que só o Município me pagaria o meu caixão. Enfim fui lá mas deram-me uma corrida e chamaram-me nomes. Agora como me vejo sem dinheiro e sem caixão venho pedir a Vossa Senhoria mandar abrir uma subscrição entre o Comissariado, a Câmara, a Fazenda, o Quartel General e a Secretaria Geral a quinhentos angolares cada e liquidar assim o caixão ou então vejo necessidade de apelar para a Relação dizendo que nem V. Exa. ligou nenhuma. Espera difirimento
Silva dos Caixões
[5.ª edição revista, 2013, pp. 213-215]
LUSITÂNIA (1980)
RESPOSTA DE ARMINDA A JC EM MEMORÁVEL DATA:
Montemínimo, 25 de abril
Querido João Carlos,
quando a minha missiva aí chegar já estarás bem informado do que aqui se passa. Acho que, em vez de ser eu a partir como me aconselhas, deves ser tu a fazê-lo, não só por causa da morte do Pai, também porque a ditadura já não dura. Se andamos a lutar pelo fim dela, não tanto quanto Samuel mas o bastante para te zangares com o Pai, não faz sentido ficares num exílio voluntário agora que os exilados vão voltar, segundo parece mais provável. Ainda se não sabe até onde irão estes militares, nem se soará a hora das massas populares. Pelo menos porém fala-se em democracia, quase novidade neste país.
A tua carta de dezasseis, escrita nos degraus da Dogana onde imagino muita luz, era bem escura, que a benza o demo. A ela correspondo não com pormenores do triste noite a noite nesta casa onde fiquei para acompanhar a Mãe, antes com outras «visões», ou uma só, tida recentemente, presságio do que hoje aconteceu, do mesmo modo que os teus sonhos significavam talvez a morte do Pai de que não «sabias» nada. Estava a ler Montale quando «vi» aproximar-se uma borrasca, furacão ou tempestade em que eu era Miranda sem Prospero, perdida no meio dum imenso rimbombar de trovões vindo por montes e matos, ao longe, com um ruído de pelo menos quatro pistas da melhor estereofonia. É o fim, disse de mim para mim, e o pior é que as pessoas vão gostar, gostam de grandes desastres, muitas no fundo desejam mortes trágicas, heroicas, catastróficas. Não posso pretender ter pensado isto assim, tão claro, mas esta ideia distraiu-me do perigo. De instinto corri para junto do muro anexo ao nosso campo de futebol, cuja brancura maníaca separava os lugares de peão e bancadas das terras de olival alinhando batalhão de árvores. Saltei o muro, queria presenciar o rebentar da vaga, a confusão ou o que fosse com um som de fim do mundo. O mais seguro seria deixar-me ali ficar onde a onda não chegasse nem o tropel das tropas me esmagasse, nem o vento ciclone me levasse, me arrastasse igual a folha, palha, me atirasse contra pedras, contra esta paisagem dura, árida. E o estrondo crescia, o frio, para usar expressão pré-fabricada, subia espinha acima, reflexos de faróis, ruídos de automóveis aumentavam em bloco, pneus chiavam, buzinas cresciam para mim apitando ritmadas, maralha de carros decidida a acabar-me com a raça. De repente porém começaram a tocar um chachachá festivo, inofensivo, fiquei calma, tudo tão rápido, depressa precipitado, e afinal, à portuguesa, não passou de um falso alarme. Festejavam vitória da bola local? Era o regresso à base do grupo excursionista montemínimo?
De resto passei o dia inteiro agarrada à telefonia, depois à televisão, indo à estação das camionetas esperar pelos jornais da capital, tentando telefonar a Samuel que não parou em casa, deixei recado, irei ter com ele amanhã, não aparece uma revolução assim do pé para a mão, se calhar nunca mais terei outra ocasião de ver um regime esticar o pernil, se é que não se trata dum engano, fada morgana. Agora, cansada de excitação, lembrei-me da lenda do José Maria dos Santos, ouvindo que um navio de cereais naufragava no estuário do Tejo, arrematando-o em leilão apesar de estar podre com a água do mar, encharcado de água (água provavelmente doce no estuário) e alimentando várias varas de porcos até ficar milionário. Será parábola da esperteza saloia nacional? Beija-te a tua irmã esperando que venhas entretanto e não seja necessário escrever-te outra carta.
Arminda
[7.ª edição revista, 2014, pp. 91-94]
CAVALEIRO ANDANTE (1983)
PÓS-ESCRITO II
Email de Marta a J.C. o primeiro dia de 2015Meu caro confidente secreto de outras eras,
Ontem, quando os melancólicos como eu costumam fazer o balanço do ano e tentam arrumar o que nunca vão conseguir arrumar, abri um gavetão da cómoda do meu quarto e dei com algumas das tuas missivas amorosas, umas apaixonadas e esperançosas, outras desanimadas. Esquecida e desgarrada debaixo daqueles molhos de cartas postas por ordem cronológica, estava uma também tua, ainda no seu subscrito com selos em Lire italiane de há três décadas. Que andei eu a fazer nestes trinta anos? Tive vontade de chorar e chorei mesmo. Dias antes recebera um daqueles enjoativos votos vitalícios coletivos, enviados em simultâneo, com um único clique, a não sei quantos destinatários. Na longa lista vinham dois ou três nomes meus conhecidos e, entre eles, o teu endereço de email. Fiquei hirta, atordoada, desliguei logo o laptop.
Durante uma semana fingi que esta revelação involuntária não me tocava, que este capricho do acaso não perturbava o curso da minha vida desatenta aos passos descalços e traiçoeiros do tempo. Foi vão o fingimento. Pouco a pouco, o minúsculo redemoinho inicial foi-se transformando num turbilhão de imagens que julguei soterradas nas areias movediças do passado. O tempo conspira contra mim, contra nós, contra vivos e mortos. Para quê lamentar-me, se o garrote do tempo ganha sempre? Suportamos melhor o envelhecer se não formos olhados por quem foi jovem connosco. Joguei à defesa, mascarei a solidão de mil maneiras. Hoje tenho pena de tudo o que não vivi, não li, não vi, não ouvi, consciente enfim do nunca mais. Pensava que o massacre do avançar da idade me compensaria tornando-me menos insegura. E ser agora arrastada assim, sem aviso, por este sentimento de perda, este vendaval insano de lembrança! Porém, mesmo quando o desejar se desvanece, resta-nos a intensidade daquilo que perdemos. As cinzas conservam longamente o calor do que foi chama.
Condenada ao passado que não acaba de acabar, envia-te um beijo pouco virtuoso mas lamentavelmente virtual a tua nada ajuizada
Marta
[6.ª edição revista e aumentada, 2015, pp. 375-377]
O CONQUISTADOR (1990)
Acreditei durante muito tempo ter vindo ao mundo de um modo diferente de toda a gente. Foi minha avó Catarina – e as avós nunca mentem – quem me meteu esta ideia na cabeça. Costumava contar-me que, num dia de inverno, de manhã cedo, apesar do nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora.
Como testemunhas presenciais minha avó citava um cavaleiro maneta, mestre equestre, que para ali ia montar acompanhado pelos seus três peões de brega, recrutados entre os mais aparvalhados das aldeias. Eles e o faroleiro assistiram estremunhados ao estranhíssimo espectáculo. E os cinco disputaram entre si quem iria ficar comigo. A meio da discussão foram atacados por uma cobra-marinha que estava a guardar-me. Mas João de Castro, com a lança que lhe servia para espetar os polvos entre as rochas, cortou à cobra monstruosa a cabeçorra diabólica, assim conquistando o direito à minha posse.
[4.ª edição revista, 2017, pp. 29-30]
O MURMÚRIO DO MUNDO (2012)
Encadeado pelo excesso de luz no exterior e absorto em cogitações, devo ter-me distraído, e de repente vi-me ali sozinho. Não, afinal não estava sozinho: um homem baixo espreitava-me parado entre duas capelas do lado esquerdo, semioculto sob o púlpito de dossel muito teatral sobredecorado com motivos florais e colocado a meia altura da parede, de modo a dar a ilusão de estar suspenso. Seria o sacristão, um vigilante? A princípio não liguei. Porém, sentindo-me observado, olhei segunda vez e, sim, era ele, o homem que entrevi de fugida em casa da família Figueiredo. Trazia o mesmo corpete ou colete verde-velho, as calças amarelo-açafrão ou amarelo-enxofre em forma de balão, desmasiado largas até para a mais exótica das modas atuais, e as tais botas altas de cano mole, descambado. Fez-me uma vénia oriental, as mãos juntas diante da cara como se rezasse, e veio vindo devagar, no andar inquieto de quem receasse assustar-me.
[2.ª reimpressão, 2012, pp. 55-56]